domingo, 14 de fevereiro de 2010

DIOGO MAINARDI E NELSON PIQUET

Povo do Mal,
História estranha. Isso é o que mais se aproxima de uma definição para como “recebi” a reportagem abaixo. Uma pasta com documentos, recortes de jornais e algumas revistas com datas entre 1990 e 1992: essa é descrição do que encontrei jogado no passeio de minha casa ontem (13/02/10). Entre as revistas, uma raridade: A PLACAR comemorativa dos 50 anos de Pelé. Fatos históricos e contextuais que acompanharam o cinquentenário do Rei. Incrível! Já, nas outras revistas, me chamou a atenção uma matéria de Diogo Mainardi. Não o atual Diogo colunista da VEJA, mas um mesmo Diogo, entretanto, colaborador dessa revista semanal. Reportagem sobre o grande campeão de F1 Nelson Piquet. De tão interessante, não só a comprovação do estilo inconfundível de Mainardi, mas também as boas revelações sobre Piquet, que resolvi postar na íntegra o texto. Vale mesmo a pena ler toda a matéria. Ela revela um pouco de uma rivalidade que dividia o Brasil dos anos 80 em “sennistas” e “piquetistas”. Se é apropriado o comentário: faço parte do segundo time! ADEUS!


PERFIL

O ÚLTIMO DOS BOYS
DIOGO MAINARDI

“Vou enfrentar com serenidade esta minha saída da Fórmula I". disse-me Nelson Piquet na quinta-feira passada. Para nós piquesistas. é a pior notícia possível. Afinal, quem se incomoda com a guerra iugoslava, a desagregação soviética e o infanticídio nas metrópoles brasileiras diante do fim da carreira automobilística de Nelson Piquet? Mas foi isso que aconteceu. Aos 39 anos de idade, depois de conquistar três campeonatos mundiais e 23 vitórias em grandes prêmios. "incluindo aquela que me desclassificaram no Brasil", ele foi considerado velho e caro demais por todas as escuderias de Fórmula I e acabou melancolicamente sem emprego para a próxima temporada. Cansado da Benetton, ignorado pela Ferrari, esnobado pela Williams, preterido pela Ligier, ninguém se dispôs a contratar este que, sem dúvida alguma, é o maior piloto de todos os tempos, o único a desafiar a monótona hegemonia da McLaren, equipe que facilitou os recentes tricampeonatos de Prost e de Senna e que na última década venceu até mesmo com corredores de segunda categoria como James Hunt e Niki Lauda, privado da orelha direita. Mas a vingança dos piquesistas será arrasadora. Boicotaremos todas as montadoras de automóveis, marcas de cigarros, indústrias de pneus, distribuidoras de gasolina, companhias de seguro, bancos japoneses e griffes de moda que patrocinarem a Fórmula I. A partir desse instante, só aceitaremos nos locomover de bicicleta. Além disso, assistiremos a qualquer programa de televisão que esteja passando no mesmo horário das corridas, seja ele Clube do Bolinha ou coisa do gênero. Aqueles que se recusarem a aderir ao boicote serão automaticamente considerados sennistas. Preparem-se. Guerra é guerra. Jamais nos renderemos.
Ao contrário do que se imagina, porém, a saída de Piquet das pistas não deve ser vista como um simples fato esportivo. Na verdade, a sua aposentadoria forçada é um acontecimento de notável significado antropológico, pois trata-se do mais evidente sinal de envelhecimento para toda uma geração masculina que hoje em dia se encontra entre os 30 e 40 anos de idade, que cresceu sob a ditadura militar e o milagre econômico, num período de explosão demográfica e favelamento dos centros urbanos, de especulação imobiliária e dos primeiros televisores coloridos, dos rachas entre os "boys" em seus carros rebaixados de escapamento aberto, tala larga e vidro-bolha de coloração fumê. Dessa maltratada geração. Piquet é o maior representante, o seu símbolo mais perfeito. Provavelmente por ter se transferido do país naquela época para se aventurar na Europa, ele ficou alheio a todas as transformações que fomos sofrendo ao longo do tempo e conservou-se exatamente como era quinze anos atrás, uma espécie de fóssil do que fomos ou gostaríamos de ter sido. O seu espírito debochado, gregário e mulherengo é um bom exemplo disso (quando Nigel Mansell mandou instalar um busto da própria mulher nos jardins de sua casa, Piquet comentou: "Ele não ficou contente em ter a mulher mais feia do mundo, quis ter também a segunda"). O seu vocabulário é repleto de gírias obsoletas também. Para dar uma idéia dessa ligação sentimental de Piquet com o passado, basta lembrar que alguns anos atrás ele tentou construir uma réplica do Fusca envenenado que ganhou do pai ao ser aprovado no vestibular para Engenharia, "com segunda opção em Filosofia. a porta de entrada para a universidade". Quando a réplica finalmente ficou pronta, com um motor de 2 litros e mais de 100 cavalos de potência, deu umas voltas pelas avenidas de Brasília e teve uma das maiores decepções de sua vida. O problema é que ele havia se habituado à BMW turbo que possui em Monte Carlo. Confrontado com a BMW, o pobre Fusquinha branco foi obrigado a se conformar à condição de mero passatempo.
Afastado das corridas de Fórmula I, Piquet está agora se transformando em homem de negócios, envolvido em inúmeros investimentos imobiliários e comerciais. que a partir de agora deverão garantir o seu futuro. Antes de mais nada, montou em Brasília uma moderníssima loja de pneus Pirelli, com equipamentos importados que balanceiam as rodas em sete segundos e atendem a vinte carros simultaneamente. A loja se chama Piquet Pneus. Mandou para lá boa parte de sua coleção de fotos e troféus e transformou a loja, conforme ele mesmo diz, em atração turística da cidade, com cerca de 400 visitantes por dia. O fato de uma borracharia se tomar atração turística só é hipnotizável num anecúmeno niemeyeriano como Brasília. Mas não é só isso. Depois de amistoso encontro com Collor. Piquet também conseguiu driblar uma lei corporativista que lhe impedia de montar uma revendedora Mercedes Benz na cidade. Agora que os entraves burocráticos foram resolvidos, prevê que a revendedora poderá entrar em funcionamento dentro de um ano. Além disso, como ele quer continuar no mundo do automobilismo, acabou de criar a Piquet Racing, uma escuderia de Fórmula 3000, sediada na Inglaterra, que tem um jovem francês como único piloto. A manutenção de uma escuderia semelhante custa aproximadamente I milhão de dólares ao ano, mas Piquet não precisará desembolsar um tostão, pois a família do piloto francês já se comprometeu a bancar todas as despesas. Dessa forma, administrando o seu patrimônio com grande prudência, acreditamos que Piquet jamais terá dificuldades financeiras. Se isso por acaso se verificasse, não haveria problemas. Nós piquesistas nos comprometeríamos a trocar e alinhar os pneus em sua loja ao menos duas vezes por semana.
O que de fato mudou para Piquet, mais do que as suas iniciativas empresariais, foi o dia-a-dia. Acostumado a saltar de um autódromo para o outro o ano inteiro, ele agora divide seu tempo em atividades ligeiramente diferentes. Na semana passada, por exemplo, depois de assistir a um torneio de motocross em Gênova organizado por sua empresa de promoções esportivas, ele foi à Suíça para discutir a respeito do motor que irá equipar a nova escuderia de Fórmula 3000. A seguir, após uma breve escala na Holanda, voltou para Monte Carlo, onde mora num esplêndido iate transatlântico de 125 pés, com cinco cabines duplas, duas salas e um heliporto no convés. Atualmente, convive com "uma menina belga" chamada Caterine, que fala um português fluente, sem sotaque. Com as duas exmulheres, uma brasileira e a outra holandesa, mantém ótimas relações. No total, são quatro filhos. O mais velho é piloto de kart, mas não poderemos contar com ele, pois aos 13 anos já tem 1,75 metro de altura. Vamos torcer para Lazlo, o caçula. Quem sabe ele puxa o pai, assim como Piquet puxou a mãe, dona Clotilde, uma divertida marceneira que constrói móveis e casas de bonecas. Algum tempo atrás, Piquet deu um motor-home de presente para a dona Clotilde. Agora, ao visitar as amigas em Brasília, ela costuma dormir estacionada em seus jardins. Quando Piquet chega de madrugada de viagem, ela leva o motor-home até o aeroporto e aguarda-o tranqüilamente à beira da pista de pouso.
Para compreender inteiramente a personalidade de Piquet, entretanto, não basta analisar a sua descendência: Mais importante do que isso é compará-lo a seu maior inimigo, o seu "professor Moriarty", o detestável Ayrton Senna. De temperamento celibatário e místico, cujo ápice foi o improvável encontro com Deus numa curva do Autódromo de Suzuka. Senna tenta passar a imagem de garoto-prodígio em missão divina e patriótica que está arriscando a vida para o nosso bem. Piquet é o oposto. As suas motivações são sempre individuais. Quando corria, era porque se divertia e ganhava bem. Se ele tinha um objetivo, este era simplesmente superar as dificuldades que encontrava diante de si. No início, como acontece com quase todo mundo, a falta de dinheiro era uma dificuldade. Por esse motivo, ainda em Brasília, nos intervalos entre os rachas com o Fusca envenenado, ele tentava se profissionalizar freqüentando os cursos do SENAI e SENAC de datilografia, encadernação, vendas ao varejo, mecânica geral, afinação de motores, lanternagem e o que aparecesse pela frente. Foi esse seu temperamento empírico que lhe permitiu ser o mais inventivo de todos os pilotos contemporâneos de Fórmula I, sendo o responsável pela introdução de diversas práticas que mais tarde se tomariam absolutamente corriqueiras, como o aquecimento de pneus, a dispensa do diferencial autoblocante em certos circuitos (o que é o diferencial autoblocante?) e o abastecimento de combustível durante a corrida. Do ponto de vista profissional, Piquet reconhece o talento automobilístico de Senna, "apesar de sua tendência a jogar os pilotos rivais para fora da pista". Quanto aos outros aspectos de Senna, ele "acha graça".
Apesar das diferenças entre os nossos pilotos, existe uma curiosa coincidência fonética que os une e talvez merecesse ser aprofundada, isto é, o fato de que Emerson, Nelson e Ayrton, os três grandes campeões brasileiros do automobilismo, têm nomes terminados em "on", absolutamente extravagantes mas ao mesmo tempo genuinamente nacionais, inspirados no sobrenome de um escritor americano, de um almirante inglês e de um famoso eletrotécnico britânico. Será que alguém numa determinada curva de Suzuka protege todos os Wellington, Wilson, Washington, Hilton, Wilton, Milton, Hamilton e Adilson nascidos neste país? Será que existe uma convincente explicação cabalística para esse fenômeno? Qualquer que seja a resposta para essas singelas considerações metafísicas, a única coisa que nós piquesistas podemos desejar é que o nosso ídolo jamais pare de correr, nem que seja em seu Fusca envenenado, nem que seja de autorama, nem que seja de patins.
VEJA, 25 DE DEZEMBRO, 1991

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